"A computação, a teoria da informação e o acesso à mesma, a ubiquidade da Internet e da rede global envolvem muito mais do que uma revolução tecnológica. Implicam transformações de consciência, de hábitos de percepção e de expressão, de sensibilidade recíproca, que mal começámos a avaliar." George Steiner, in As Lições dos Mestres
domingo, 30 de janeiro de 2011
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
[LPP] Le Petit Prince - part 9/13 l' 13/13
Musical based on the novel "The little prince" by Antoine de Saint-Exupéry. Cast; Daniel Lavoie (Pilot), Jeff (Little Prince), Cathialine Andria (The Rose), Stephane Neville (The king), Laurent Ban (The vain man),Sebastien Izambard (The businessman)
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
sábado, 22 de janeiro de 2011
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
domingo, 16 de janeiro de 2011
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
domingo, 9 de janeiro de 2011
sábado, 8 de janeiro de 2011
"Aquilo tinha um impacto"
Não é um segredo, por isso pode-se contar: Carlos Castro vive no bairro das Amoreiras, em Lisboa, num andar alto. A sala da casa tem uma parede ovalada com uma janela imensa. Está sempre - ou quase sempre — tapada por um cortinado de pano grosso. Por causa da beleza da vista: as torres que se avistam estão revestidas por um vidro espelhado que projecta com intensidade o sol para dentro da sala, tornando o ambiente quente e húmido, como na sauna.
Junto à janela há uma estrutura de madeira onde estão aconchegados, em dezenas de molduras de muitos tamanhos e estilos, alguns amigos e entrevistados: Luís Figo, Manuela Eanes, Amália Rodrigues, Romy Schneider...
Numa parede próxima do lugar onde está exposta a colecção de fotografias está outra colecção, a de Registos Religiosos — são tantos (sobretudo de Santo António) que forram a parede. Nesta sala, os objectos como que estão arrumados por temas: há um cantinho com muitas e bonitas garrafas de cristal, outro cantinho com as pratas, uma cristaleira de época protege os objectos mais frágeis, uma zona de livros (muitos) e os quadros — João Santiago, Gracinda Candeias... "Tenho tantos, oferecem-me, não posso ter aqui todos" — revestem o que sobra das paredes.
Não é um segredo, mas é uma fofoca: a sala está demasiado cheia.
A quem é que isso interessa, saber como é a sala de Carlos Castro? Ou que livros lê? — agora anda mergulhado no romance "Quando Nietzsche Chorou", porque Nietzsche o emociona. Ou qual é a sua cidade favorita em todo o mundo — Nova Iorque, e quando morrer gostava que as suas cinzas por lá fossem espalhadas. Ou que já lavou escadas e trabalhou como caixeiro.
A fofoca é isto, são bocadinhos de intimidade — mesmo que a intimidade seja apenas a cor das cortinas (pérola). E interessa a todos. Por isso é que existem tantos títulos cor-de-rosa e tanta a gente a falar da vida dos outros (há espaços na programação das televisões dedicados a isso).
Se a fofoca não interessasse, o cronista de costumes Carlos Castro não estaria a comemorar 30 anos de carreira — as celebrações já começaram e vão durar um ano; antes do Natal sairá a autobiografia "Solidão Povoada" e em Setembro do ano que vem uma gala de encerramento em que o jornalista distinguirá com um galardão as dez personalidades que mais o marcaram. Foi na fofoca que tudo começou — e por causa dela se tornou famoso. É que durante décadas foi praticamente o único a dedicar-se a este género de crónica social — antes havia Vera Lagoa, a quem Carlos Castro chama "tia", porque lhe ensinou tanta coisa.
"As pessoas tinham medo de mim. Doía-me quando mo diziam, mas comecei a ficar conhecido..." Agora está mais dócil e é ele o alvo das críticas. Um episódio recente: o estilista Miguel Vieira foi mostrar o seu trabalho à Turquia e a Miss local não quis usar certas transparências. Carlos Castro, que tem uma coluna diária no jornal "24 Horas", escreveu sobre o desfile de moda, entrevistou a Miss e passou ao lado da polémica. Deixou de ser quem é, acusaram-no. "Vi as coisas com outro olhar", responde ele.
"A religião [da Miss] impedia-a de passar certas transparências. O Miguel Vieira não se chateou nada, não houve problema nenhum. E foi isso que eu disse. Como observador, não tenho que ver as coisas como os outros", diz Carlos Castro. Argumenta com "a sabedoria" que 30 anos de carreira lhe deu. "O facto de não dizer mal não é o importante. Tinha que contar o que contei e mais nada."
A análise de quem está no meio é diferente. O fundador e ex-director das revistas "Lux" e "VIP", Carlos Pissara, diz o óbvio: Carlos Castro está mesmo "mais contido". Mas isso não é importante. Importante é a razão pela qual o cronista adoçou. Hoje os "famosos" já não precisam de intermediário, como antigamente, quando Carlos Castro começou a escrever numa secção que já existia na revista "Nova Gente" chamada Daniella. "É alucinante o que agora as pessoas dizem delas mesmas. Não há qualquer pudor. As pessoas expõem tudo e os jornais também. A partir do momento em que os próprios indivíduos falam assim, o que é que interessa o Carlos Castro dizer que não-sei-quem fez mais uma plástica?" Portugal passou por várias fases, assim como a carreira de Carlos Castro, sublinha Carlos Pissara.
"As pessoas estão cansadas do lavar de roupa suja, já não gostam. Querem uma crónica social diferente e vejo isso pelo que escrevo: não entro a matar ou a achincalhar, não devasso a vida privada, fugi sempre desse formato. E recebo resposta da parte dos leitores", defende-se o cronista, que na sexta-feira se estreou nas manhãs da RTP com uma "crónica pela positiva", em que comenta a imprensa nacional e estrangeira. "Vou criticar, mas não vou fazer o programa para dizer mal de ninguém."Carlos Castro sempre foi um "cronista de fofocas" diferente. Talvez porque não era o que queria. O "caminho" deveria ter sido outro.
Nas entrevistas que lhe foram sendo feitas, há sempre uma pergunta sobre as memórias de África. O cronista nasceu em Moçâmedes, actual Namibe. Diz que não gosta de praia, mas são elas que lembra do Sul de Angola —Namibe tem um deserto, mas tem sobretudo praias: Praia da Lúcia, Praia Azul, Porto Alexandre e a Baía dos Tigres. O cenário de paraíso tem fantasmas à mistura.
Carlos Castro começou a escrever em menino. "Comecei aos oito anos, numa velha máquina de escrever. Viciei-me de tal forma [a escrever à máquina e no computador] que tenho problemas com a ortografia, os bancos estão sempre aflitos com a minha assinatura." Gostava de poesia — "Ganhei muitos prémios, aos nove, dez anos concorria e ganhava os jogos florais todos... Não ganhei mais pelo meu pai." E gostava de ir ao cinema ver os filmes do neo-realismo italiano e francês que passavam em Angola. "A censura era mais branda do que em Portugal." Emocionava-se com Anna Magnani em "Rosa Tatuada", sofria com Sofia Loren em "Duas Mulheres". "Marcou-me. A minha educação foi essa: os livros e os filmes."
O pai não percebia aquele filho —a seguir foram os irmãos a hostilizar. "Aquilo para ele era tudo muito estranho, muito esquisito, e foi essa mão que fez com que eu não seguisse [a escrita] como queria. Quando tinha 15 anos, a mãe e as irmãs mandaram-no embora de casa. Para o salvar — subentende-se, pois Carlos Castro prefere não avançar no tema. Na biografia também não fará a história ir mais além: "Aos fantasmas que me fizeram mal vou ignorá-los."
Desde esse dia que vive só. E da "mágoa" pelo afastamento obrigatório da família nasceu-lhe uma solidão — no título da biografia assume isso, que há uma escolha de vida e que há uma tristeza no início do seu percurso. "Foi um momento dramático." "Tive pessoas de quem gostei, que amei —s e amei, amei uma vez na vida —, viver só foi uma opção. Mas, apesar de irremediavelmente só, estou sempre acompanhado pelos meus escritores, pela minha música, a Callas, o Brel, que gostava de ter conhecido, a Piaff. Quando estou só, ponho a música muito alta, sem me preocupar com os vizinhos."
"No fim-de-semana vou a um teatro, a um cinema, a um concerto, e isso preenche-me. E sou um viajante do mundo. Conheço 46 países e oitenta e tal lugares. Já estive com tantas raças e com tantos credos que não me posso queixar. Houve países que me deslumbraram, povos que senti que tinha que conhecer, e ainda me falta uma boa caminhada."
Há duas viagens de recomeço no percurso de Carlos Castro. A primeira, de Moçâmedes para Luanda. A segunda, de Luanda para Lisboa. Nos dois lugares fez o mesmo: "Tudo." Em Luanda foi caixeiro, em Lisboa lavou escadas. Além disso, foi "abrindo caminho".
Era ainda um miúdo ganhou, como letrista, um festival da canção de Angola. "Foi quando começámos a ouvir falar dele", recorda o estilista Augustus. A canção, interpretada por Carlos Quintas, chamava-se"Feitiçode tinta e o poema falava da puberdade das raparigas do povo boximane, "tema ousado na época", lembra o cronista.
Foi publicando poemas e contos no jornal "ABC", colaborou com a "Semana Ilustrada". E, quando fez a tropa, conheceu Angola "de lés a lés". "Fiz a tropa em São Salvador do Congo, o meu capitão foi Melo Antunes. Todos me tratavam como se eu fosse a mascote da companhia, porque eu era tão pequenino. Quando a travesti Ruth Bryden morreu, causou espanto que fosse António Lobo Antunes o autor do prefácio do livro que Carlos Castro escreveu — a história de Bryden fascinava o romancista. Mistério maior: os dois homens marcaram encontro para se conhecerem e falaram durante horas. De quê?, houve quem perguntasse. Castro admirava Melo Antunes, Lobo Antunes também, e era seu amigo. "Falei muito sobre [Melo Antunes e a guerra] no dia em que conheci Lobo Antunes. Foi um tempo de que gostei, mas vi muita morte... foi no fulgor da guerra."Cansado da guerra e da morte, apanha um avião para Lisboa em 1975, dois dias antes da independência de Angola. "Quando aconteceu o 25 de Abril, fomos todos para as ruas com bandeiras. Fui para a Cidadela, quando o MPLA entrou em Luanda, dissemos poemas, eu disse um poema de Agostinho Neto, outro de Alda Lara...Estávamosfelizes, mas tudo acabou naquela guerra terrível. Foi tremendo ver, todos os dias, as pessoas conhecidas a morrer. Jurei que não ficava e fui para o aeroporto com uma 'T-shirt', uns ténis e umas calças de ganga. Quando cheguei, não sabia nada da minha mãe e das minhas irmãs, passei meses a procurá-las e encontrei-as numa miserável pensão da Rua dos Bacalhoeiros [em Lisboa]. Mas tenho saudades de Angola."
Por alguma razão que Carlos Castro não consegue explicar nunca lá voltou. Houve oportunidades, por exemplo, quando Mário Soares visitou o país. O cronista viajou muito na comitiva do ex-Presidente, depois de pacificar "a mágoa com a forma como foi feita [a descolonização]". Mas optou por acompanhar as Doce ao Festival da Canção, em Harrogate. "Não gosto muito de Inglaterra e dos ingleses, mas estava doido por conhecer Harrogate, aquele mistério todo do Norte de Inglaterra, a história da família Brontë. Li tudo delas quando era criança e quis ir visitar a casa, ver o museu."
A explicação é valida, mas há alguma coisa por revelar neste não regresso a Angola. "Sim, andei a adiar... Mas como dizia Agostinho Neto: 'Hei-de voltar.'" Já existe um convite formal, até porque depois da autobiografia Carlos Castro fará um livro com uma recolha de poemas angolanos e poderá ir apresentá-lo a Luanda (antes há outro livro planeado, que já tem título, "As Mulheres da Minha Vida").
Há uma história que gosta de contar: quando era pequenino, enterrou, no quintal de casa, uma caixa com objectos pessoais. Pode ser que ainda lá esteja e que possa recuperar os tesouros de um lugar onde foi feliz e triste, ao mesmo tempo. "Não tenho receio de lá voltar. Quero é sentir-me amado, bem-vindo." Em Lisboa ajustou-se na noite travesti. Fazia espectáculos e escrevia os seus textos. A noite era "bonita", recorda.
"Os militares de Abril encheram as discotecas e os bares. Havia as pessoas da televisão, do espectáculo - o Carlos Mendes, o Raul Solnado, o Carlos Cruz, o Júlio Isidro, a Eunice Munoz..." O espectáculo "Cem Dias no Poleiro em Rotação Alterada", sobre Maria de Lurdes Pintasilgo, foi um êxito. Natália Correia elogiou o texto e Maria Alzira Bento, que era chefe de redacção da "Nova Gente", achou-o tão brilhante que convidou o autor a colaborar na revista. "Era um colaborador tão intenso que acabei por ficar." E, quando começou a ser ele a dar a maior parte das dicas para a Daniella, tornou-se óbvio que tinha que ser Carlos Castro, e não Maria Alzira, a escrever a coluna.
"Aquilo tinha um impacto", diz Carlos Castro. "Aquilo" foi importante, diz quem observou o fenómeno. O novo cronista dava passos para além da má-língua. É o próprio a dizer que ajudou muita gente—actores, escultores, pintores, músicos — falando deles e do seu trabalho. Augustus ajuda a explicar como: "Em 1976, 77, 78, até 80, ninguém ligava à moda, por exemplo. Era uma coisa fútil [no contexto político de então]. O Carlos falava da moda, dava os nomes das pessoas que apareciam, o meu, o da Ana Salazar, apoiava eventos, falava de cultura. Ele não é o cronista social vazio." Conheceu José Gomes Ferreira, "o maior poeta deste país", conheceu "bem" David Mourão- Ferreira, Ary dos Santos "foi um grande amigo". Outras pessoas: Joaquim Pessoa, Bual, mestre Martins Correia, Dorita Castelo-Branco. "Tanta gente... Vê-se na minha casa, nos livros, na pintura, nos livros, nos discos."Mas estes são os amigos. Porque também há os "monstros". "Criei muitos no social." Pessoas que se aproveitaram. "Houve pessoas que me traíram. Não eram amores nem romances. Gente que abusou da minha forma de 'dar sem nada receber', como disse o Fernando Dacosta. Eu sou muito transparente e as pessoas abusaram de mim, serviram-se de mim para subir degraus, para aparecer, para conseguirem empréstimos bancários, para se infiltrarem em sítios onde nunca entrariam... tudo usando o meu nome sem a minha autorização."
Pissara reforça o que o próprio Carlos Castro já disse: às vezes enganou-se. "Sempre pôs muita coisa e muitas atitudes em causa. É preciso haver pessoas como ele e é saudável que existam, para se dizerem as coisas que têm que ser ditas. Às vezes pode ter dito coisas não fundamentadas, mas esse é o reverso da medalha", quando se lida com um tema escorregadio como o social — com a gente que quer aparecer.
Neste ponto há outro factor de solidão: "As pessoas que fazem isto — que não têm medo de dizer as coisas —tendem a refugiar-se na sua concha", refere Carlos Pissara. "O Carlos é um homem de grande sensibilidade", diz. Para se perceber como, fala nos mortos: quando os amigos morrem, nunca os esquece, continua a falar deles, mesmo anos depois. "É um amigo na vida e para além dela."
É verdade: Carlos Castro emocionase a falar de Romy Schneider, actriz que nunca conheceu mas que "sente" como uma das suas perdas, de Ivone Silva — "Tenho umas saudades loucas dela; apanhei bebedeiras incríveis com ela nos anos 80" —, de Laura Alves, de Mirene Cardinal, de Amália Rodrigues —"Morreu no dia a seguir ao meu aniversário" —, de Ruth, e da mãe. Hoje, Carlos Castro já não corre para todas as festas, construiu uma "boa rede" de informações: "Contam-me tudo." Já tem sabedoria para se proteger dos "monstros". E diz não estar "em altura de pôr ninguém em negativo".
Será que ainda é preciso? Estas ideias-diagnóstico da realidade são de Carlos Castro: há cada vez mais gente à procura do protagonismo,fazem-sefestas para se publicarem fotografias nas revistas, há uma "overdose" de futilidade, há uma tremenda falta de educação e de cultura, há uma reserva de juventude que pode fazer um Portugal diferente e já não somos o país do xaile negro, mas ainda somos pequeninos, coitadinhos, fatalistas, e continua a ser sintomático que a inveja seja a última palavra de "Os Lusíadas".
"É importante ainda termos o Carlos. Neste mundo há umas pessoas que pretendem entrar no social e quando os cronistas não criticam...", responde Augustus. Carlos Pissara teoriza: "O tempo do Carlos ainda não acabou, mas o que ele representa—alguém que desmascara, que denuncia —já não tem o mesmo impacto. Mas ele é singular. Não há mais pessoas como ele."
Texto publicado na edição de 1 de Outubro de 2006 da PÚBLICA
Perfil do jornalista feito aos 30 anos de carreira
Entrevista à PÚBLICA em 2006: "Criei muitos monstros"
08.01.2011 - 16:17 Por Ana Gomes Ferreira
Junto à janela há uma estrutura de madeira onde estão aconchegados, em dezenas de molduras de muitos tamanhos e estilos, alguns amigos e entrevistados: Luís Figo, Manuela Eanes, Amália Rodrigues, Romy Schneider...
Numa parede próxima do lugar onde está exposta a colecção de fotografias está outra colecção, a de Registos Religiosos — são tantos (sobretudo de Santo António) que forram a parede. Nesta sala, os objectos como que estão arrumados por temas: há um cantinho com muitas e bonitas garrafas de cristal, outro cantinho com as pratas, uma cristaleira de época protege os objectos mais frágeis, uma zona de livros (muitos) e os quadros — João Santiago, Gracinda Candeias... "Tenho tantos, oferecem-me, não posso ter aqui todos" — revestem o que sobra das paredes.
Não é um segredo, mas é uma fofoca: a sala está demasiado cheia.
A quem é que isso interessa, saber como é a sala de Carlos Castro? Ou que livros lê? — agora anda mergulhado no romance "Quando Nietzsche Chorou", porque Nietzsche o emociona. Ou qual é a sua cidade favorita em todo o mundo — Nova Iorque, e quando morrer gostava que as suas cinzas por lá fossem espalhadas. Ou que já lavou escadas e trabalhou como caixeiro.
A fofoca é isto, são bocadinhos de intimidade — mesmo que a intimidade seja apenas a cor das cortinas (pérola). E interessa a todos. Por isso é que existem tantos títulos cor-de-rosa e tanta a gente a falar da vida dos outros (há espaços na programação das televisões dedicados a isso).
Se a fofoca não interessasse, o cronista de costumes Carlos Castro não estaria a comemorar 30 anos de carreira — as celebrações já começaram e vão durar um ano; antes do Natal sairá a autobiografia "Solidão Povoada" e em Setembro do ano que vem uma gala de encerramento em que o jornalista distinguirá com um galardão as dez personalidades que mais o marcaram. Foi na fofoca que tudo começou — e por causa dela se tornou famoso. É que durante décadas foi praticamente o único a dedicar-se a este género de crónica social — antes havia Vera Lagoa, a quem Carlos Castro chama "tia", porque lhe ensinou tanta coisa.
"As pessoas tinham medo de mim. Doía-me quando mo diziam, mas comecei a ficar conhecido..." Agora está mais dócil e é ele o alvo das críticas. Um episódio recente: o estilista Miguel Vieira foi mostrar o seu trabalho à Turquia e a Miss local não quis usar certas transparências. Carlos Castro, que tem uma coluna diária no jornal "24 Horas", escreveu sobre o desfile de moda, entrevistou a Miss e passou ao lado da polémica. Deixou de ser quem é, acusaram-no. "Vi as coisas com outro olhar", responde ele.
"A religião [da Miss] impedia-a de passar certas transparências. O Miguel Vieira não se chateou nada, não houve problema nenhum. E foi isso que eu disse. Como observador, não tenho que ver as coisas como os outros", diz Carlos Castro. Argumenta com "a sabedoria" que 30 anos de carreira lhe deu. "O facto de não dizer mal não é o importante. Tinha que contar o que contei e mais nada."
A análise de quem está no meio é diferente. O fundador e ex-director das revistas "Lux" e "VIP", Carlos Pissara, diz o óbvio: Carlos Castro está mesmo "mais contido". Mas isso não é importante. Importante é a razão pela qual o cronista adoçou. Hoje os "famosos" já não precisam de intermediário, como antigamente, quando Carlos Castro começou a escrever numa secção que já existia na revista "Nova Gente" chamada Daniella. "É alucinante o que agora as pessoas dizem delas mesmas. Não há qualquer pudor. As pessoas expõem tudo e os jornais também. A partir do momento em que os próprios indivíduos falam assim, o que é que interessa o Carlos Castro dizer que não-sei-quem fez mais uma plástica?" Portugal passou por várias fases, assim como a carreira de Carlos Castro, sublinha Carlos Pissara.
"As pessoas estão cansadas do lavar de roupa suja, já não gostam. Querem uma crónica social diferente e vejo isso pelo que escrevo: não entro a matar ou a achincalhar, não devasso a vida privada, fugi sempre desse formato. E recebo resposta da parte dos leitores", defende-se o cronista, que na sexta-feira se estreou nas manhãs da RTP com uma "crónica pela positiva", em que comenta a imprensa nacional e estrangeira. "Vou criticar, mas não vou fazer o programa para dizer mal de ninguém."Carlos Castro sempre foi um "cronista de fofocas" diferente. Talvez porque não era o que queria. O "caminho" deveria ter sido outro.
Nas entrevistas que lhe foram sendo feitas, há sempre uma pergunta sobre as memórias de África. O cronista nasceu em Moçâmedes, actual Namibe. Diz que não gosta de praia, mas são elas que lembra do Sul de Angola —Namibe tem um deserto, mas tem sobretudo praias: Praia da Lúcia, Praia Azul, Porto Alexandre e a Baía dos Tigres. O cenário de paraíso tem fantasmas à mistura.
Carlos Castro começou a escrever em menino. "Comecei aos oito anos, numa velha máquina de escrever. Viciei-me de tal forma [a escrever à máquina e no computador] que tenho problemas com a ortografia, os bancos estão sempre aflitos com a minha assinatura." Gostava de poesia — "Ganhei muitos prémios, aos nove, dez anos concorria e ganhava os jogos florais todos... Não ganhei mais pelo meu pai." E gostava de ir ao cinema ver os filmes do neo-realismo italiano e francês que passavam em Angola. "A censura era mais branda do que em Portugal." Emocionava-se com Anna Magnani em "Rosa Tatuada", sofria com Sofia Loren em "Duas Mulheres". "Marcou-me. A minha educação foi essa: os livros e os filmes."
O pai não percebia aquele filho —a seguir foram os irmãos a hostilizar. "Aquilo para ele era tudo muito estranho, muito esquisito, e foi essa mão que fez com que eu não seguisse [a escrita] como queria. Quando tinha 15 anos, a mãe e as irmãs mandaram-no embora de casa. Para o salvar — subentende-se, pois Carlos Castro prefere não avançar no tema. Na biografia também não fará a história ir mais além: "Aos fantasmas que me fizeram mal vou ignorá-los."
Desde esse dia que vive só. E da "mágoa" pelo afastamento obrigatório da família nasceu-lhe uma solidão — no título da biografia assume isso, que há uma escolha de vida e que há uma tristeza no início do seu percurso. "Foi um momento dramático." "Tive pessoas de quem gostei, que amei —s e amei, amei uma vez na vida —, viver só foi uma opção. Mas, apesar de irremediavelmente só, estou sempre acompanhado pelos meus escritores, pela minha música, a Callas, o Brel, que gostava de ter conhecido, a Piaff. Quando estou só, ponho a música muito alta, sem me preocupar com os vizinhos."
"No fim-de-semana vou a um teatro, a um cinema, a um concerto, e isso preenche-me. E sou um viajante do mundo. Conheço 46 países e oitenta e tal lugares. Já estive com tantas raças e com tantos credos que não me posso queixar. Houve países que me deslumbraram, povos que senti que tinha que conhecer, e ainda me falta uma boa caminhada."
Há duas viagens de recomeço no percurso de Carlos Castro. A primeira, de Moçâmedes para Luanda. A segunda, de Luanda para Lisboa. Nos dois lugares fez o mesmo: "Tudo." Em Luanda foi caixeiro, em Lisboa lavou escadas. Além disso, foi "abrindo caminho".
Era ainda um miúdo ganhou, como letrista, um festival da canção de Angola. "Foi quando começámos a ouvir falar dele", recorda o estilista Augustus. A canção, interpretada por Carlos Quintas, chamava-se"Feitiçode tinta e o poema falava da puberdade das raparigas do povo boximane, "tema ousado na época", lembra o cronista.
Foi publicando poemas e contos no jornal "ABC", colaborou com a "Semana Ilustrada". E, quando fez a tropa, conheceu Angola "de lés a lés". "Fiz a tropa em São Salvador do Congo, o meu capitão foi Melo Antunes. Todos me tratavam como se eu fosse a mascote da companhia, porque eu era tão pequenino. Quando a travesti Ruth Bryden morreu, causou espanto que fosse António Lobo Antunes o autor do prefácio do livro que Carlos Castro escreveu — a história de Bryden fascinava o romancista. Mistério maior: os dois homens marcaram encontro para se conhecerem e falaram durante horas. De quê?, houve quem perguntasse. Castro admirava Melo Antunes, Lobo Antunes também, e era seu amigo. "Falei muito sobre [Melo Antunes e a guerra] no dia em que conheci Lobo Antunes. Foi um tempo de que gostei, mas vi muita morte... foi no fulgor da guerra."Cansado da guerra e da morte, apanha um avião para Lisboa em 1975, dois dias antes da independência de Angola. "Quando aconteceu o 25 de Abril, fomos todos para as ruas com bandeiras. Fui para a Cidadela, quando o MPLA entrou em Luanda, dissemos poemas, eu disse um poema de Agostinho Neto, outro de Alda Lara...Estávamosfelizes, mas tudo acabou naquela guerra terrível. Foi tremendo ver, todos os dias, as pessoas conhecidas a morrer. Jurei que não ficava e fui para o aeroporto com uma 'T-shirt', uns ténis e umas calças de ganga. Quando cheguei, não sabia nada da minha mãe e das minhas irmãs, passei meses a procurá-las e encontrei-as numa miserável pensão da Rua dos Bacalhoeiros [em Lisboa]. Mas tenho saudades de Angola."
Por alguma razão que Carlos Castro não consegue explicar nunca lá voltou. Houve oportunidades, por exemplo, quando Mário Soares visitou o país. O cronista viajou muito na comitiva do ex-Presidente, depois de pacificar "a mágoa com a forma como foi feita [a descolonização]". Mas optou por acompanhar as Doce ao Festival da Canção, em Harrogate. "Não gosto muito de Inglaterra e dos ingleses, mas estava doido por conhecer Harrogate, aquele mistério todo do Norte de Inglaterra, a história da família Brontë. Li tudo delas quando era criança e quis ir visitar a casa, ver o museu."
A explicação é valida, mas há alguma coisa por revelar neste não regresso a Angola. "Sim, andei a adiar... Mas como dizia Agostinho Neto: 'Hei-de voltar.'" Já existe um convite formal, até porque depois da autobiografia Carlos Castro fará um livro com uma recolha de poemas angolanos e poderá ir apresentá-lo a Luanda (antes há outro livro planeado, que já tem título, "As Mulheres da Minha Vida").
Há uma história que gosta de contar: quando era pequenino, enterrou, no quintal de casa, uma caixa com objectos pessoais. Pode ser que ainda lá esteja e que possa recuperar os tesouros de um lugar onde foi feliz e triste, ao mesmo tempo. "Não tenho receio de lá voltar. Quero é sentir-me amado, bem-vindo." Em Lisboa ajustou-se na noite travesti. Fazia espectáculos e escrevia os seus textos. A noite era "bonita", recorda.
"Os militares de Abril encheram as discotecas e os bares. Havia as pessoas da televisão, do espectáculo - o Carlos Mendes, o Raul Solnado, o Carlos Cruz, o Júlio Isidro, a Eunice Munoz..." O espectáculo "Cem Dias no Poleiro em Rotação Alterada", sobre Maria de Lurdes Pintasilgo, foi um êxito. Natália Correia elogiou o texto e Maria Alzira Bento, que era chefe de redacção da "Nova Gente", achou-o tão brilhante que convidou o autor a colaborar na revista. "Era um colaborador tão intenso que acabei por ficar." E, quando começou a ser ele a dar a maior parte das dicas para a Daniella, tornou-se óbvio que tinha que ser Carlos Castro, e não Maria Alzira, a escrever a coluna.
"Aquilo tinha um impacto", diz Carlos Castro. "Aquilo" foi importante, diz quem observou o fenómeno. O novo cronista dava passos para além da má-língua. É o próprio a dizer que ajudou muita gente—actores, escultores, pintores, músicos — falando deles e do seu trabalho. Augustus ajuda a explicar como: "Em 1976, 77, 78, até 80, ninguém ligava à moda, por exemplo. Era uma coisa fútil [no contexto político de então]. O Carlos falava da moda, dava os nomes das pessoas que apareciam, o meu, o da Ana Salazar, apoiava eventos, falava de cultura. Ele não é o cronista social vazio." Conheceu José Gomes Ferreira, "o maior poeta deste país", conheceu "bem" David Mourão- Ferreira, Ary dos Santos "foi um grande amigo". Outras pessoas: Joaquim Pessoa, Bual, mestre Martins Correia, Dorita Castelo-Branco. "Tanta gente... Vê-se na minha casa, nos livros, na pintura, nos livros, nos discos."Mas estes são os amigos. Porque também há os "monstros". "Criei muitos no social." Pessoas que se aproveitaram. "Houve pessoas que me traíram. Não eram amores nem romances. Gente que abusou da minha forma de 'dar sem nada receber', como disse o Fernando Dacosta. Eu sou muito transparente e as pessoas abusaram de mim, serviram-se de mim para subir degraus, para aparecer, para conseguirem empréstimos bancários, para se infiltrarem em sítios onde nunca entrariam... tudo usando o meu nome sem a minha autorização."
Pissara reforça o que o próprio Carlos Castro já disse: às vezes enganou-se. "Sempre pôs muita coisa e muitas atitudes em causa. É preciso haver pessoas como ele e é saudável que existam, para se dizerem as coisas que têm que ser ditas. Às vezes pode ter dito coisas não fundamentadas, mas esse é o reverso da medalha", quando se lida com um tema escorregadio como o social — com a gente que quer aparecer.
Neste ponto há outro factor de solidão: "As pessoas que fazem isto — que não têm medo de dizer as coisas —tendem a refugiar-se na sua concha", refere Carlos Pissara. "O Carlos é um homem de grande sensibilidade", diz. Para se perceber como, fala nos mortos: quando os amigos morrem, nunca os esquece, continua a falar deles, mesmo anos depois. "É um amigo na vida e para além dela."
É verdade: Carlos Castro emocionase a falar de Romy Schneider, actriz que nunca conheceu mas que "sente" como uma das suas perdas, de Ivone Silva — "Tenho umas saudades loucas dela; apanhei bebedeiras incríveis com ela nos anos 80" —, de Laura Alves, de Mirene Cardinal, de Amália Rodrigues —"Morreu no dia a seguir ao meu aniversário" —, de Ruth, e da mãe. Hoje, Carlos Castro já não corre para todas as festas, construiu uma "boa rede" de informações: "Contam-me tudo." Já tem sabedoria para se proteger dos "monstros". E diz não estar "em altura de pôr ninguém em negativo".
Será que ainda é preciso? Estas ideias-diagnóstico da realidade são de Carlos Castro: há cada vez mais gente à procura do protagonismo,fazem-sefestas para se publicarem fotografias nas revistas, há uma "overdose" de futilidade, há uma tremenda falta de educação e de cultura, há uma reserva de juventude que pode fazer um Portugal diferente e já não somos o país do xaile negro, mas ainda somos pequeninos, coitadinhos, fatalistas, e continua a ser sintomático que a inveja seja a última palavra de "Os Lusíadas".
"É importante ainda termos o Carlos. Neste mundo há umas pessoas que pretendem entrar no social e quando os cronistas não criticam...", responde Augustus. Carlos Pissara teoriza: "O tempo do Carlos ainda não acabou, mas o que ele representa—alguém que desmascara, que denuncia —já não tem o mesmo impacto. Mas ele é singular. Não há mais pessoas como ele."
Texto publicado na edição de 1 de Outubro de 2006 da PÚBLICA
Perfil do jornalista feito aos 30 anos de carreira
Entrevista à PÚBLICA em 2006: "Criei muitos monstros"
08.01.2011 - 16:17 Por Ana Gomes Ferreira
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
quarta-feira, 5 de janeiro de 2011
Subscrever:
Mensagens (Atom)