sexta-feira, 1 de abril de 2011

Jorge de Sena

Não, não, não subscrevo, não assino/ que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,/ como se golpes, contra-golpes, intentonas/ (ou inventonas - armadilhas postas/ da esquerda prá direita ou desta para aquela/ não fossem mais que preparar caminho/ a parlamentos e governos que/ irão secretamente pôr ramos de cravos/ e não de rosas fatimosas mas de cravos/ na tumba do profeta em Santa Comba,/ enquanto pra salvar-se a inconomia/ os empresários (ai que lindo termo,/ com tudo o que de teatro nele soa)/ irão voltar testas de ferro do/ capitalismo que se usou de Portugal/ para mão-de-obra barata dentro ou fora./ Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:/ infantilmente doentes de esquerdismo/ e como sempre lendo nas cartilhas/ que escritas fedem doutras realidades,/ incompetentes competiram em/ forçar revoluções, tomar poderes e tudo/ numa ânsia de cadeiras, microfones,/ a terra do vizinho, a casa dos ausentes,/ e em moer do povo a paciência e os olhos/ num exibir-se de redondas mesas/ em televisas barbas de falácia imensa./ E todos eram povo e em nome del' falavam,/ ou escreviam intragáveis prosas/ em que o calão barato e as ideias caras/ se misturavam sem clareza alguma/ (no fim das contas estilo Estado Novo/ apenas traduzido num calão de insulto/ ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo)./ Prendeu-se gente a todos os pretextos,/ conforme o vento, a raiva ou a denúncia,/ ou simplesmente (ó manes de outro tempo)/ o abocanhar patriótico dos tachos./ Paralisou-se a vida do país no engano/ de que os trabalhadores não devem trabalhar/ senão em agitar-se em demandar salários/ a que tinham direito mas sem que/ houvesse produção com que pagá-los./ Até que um dia, à beira de uma guerra/ civil (palavra cómica pois que/ do lume os militares seriam quem tirava/ para os civis a castanhinha assada),/ tudo sumiu num aborto caricato/ em que quase sem sangue ou risco de infecção/ parteiras clandestinas apararam/ no balde da cozinha um feto inexistente:/ traindo-se uns aos outros ninguém tinha/ (ó machos da porrada e do cacete)/ realmente posto o membro na barriga/ da pátria em perna aberta e lá deixado/ semente que pegasse (o tempo todo/ haviam-se exibido eufóricos de nus,/ às Áfricas e às Europas de Oeste e Leste)./ A isto se chegou. Foi criminoso?/ Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião/ do filme que as direitas desejavam,/ em que como num jogo de xadrez a esquerda/ iria dando passo a passo as peças todas./ É tarde e não adianta que se diga ainda/ (como antes já se disse) que o povo resistiu/ a ser iluminado, esclarecido, e feito/ a enfiar contente a roupa já talhada./ Se muita gente reagiu violenta/ (com as direitas assoprando as brasas)/ é porque as lutas intestinas (termo/ extremamente adequado ao caso)/ dos esquerdismos competindo o permitiram./ Também não vale a pena que se lave/ a roupa suja em público: já houve/ suficiente lavar que todavia/ (curioso ponto) nunca mostrou inteira/ quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano/ usada foi por tanto entusiasta,/ devotamente adepto de continuar ao sol/ (há conversões honestas, sim, ai quantos santos/ não foram antes grandes pecadores)./ E que fazer agora? Choro e lágrimas?/ Meter avestruzmente a cabeça na areia?/ Pactuar na supremíssima conversa/ de conciliar a casa lusitana,/ com todos aos beijinhos e aos abraços?/ Ir ao jantar de gala em que o Caetano,/ o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,/ hão-de tocar seus copos de champanhe?/ Ir já fazendo a mala para exílios?/ Ou preparar uma bagagem mínima/ para voltar a ser-se clandestino usando/ a técnica do mártir (tão trágica porque/ permite a demissão de agir-se à luz do mundo,/ e de intervir directamente em tudo)?/ Mas como é clandestina tanta gente/ que toda a gente sabe quem já seja?/ Só há uma saída: a confissão/ (honesta ou calculada) de que erraram todos,/ e o esforço de mostrar ao povo (que/ mais assustaram que educaram sempre)/ quão tudo perde se vos perde a vós./ Revolução havia que fazer./ Conquistas há que não pode deixar-se/ que se dissolvam no ar tecnocrata/ do oportunismo à espreita de eleições./ Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,/ ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,/ que ao povo seja dito de uma vez/ como nas suas mãos o seu destino está/ e não no das sereias bem cantantes/ (desde a mais alta antiguidade é conhecido/ que essas senhoras são reaccionárias,/ com profissão de atrair ao naufrágio/ o navegante intrépido). Que a esquerda/ nem grite, que está rouca, nem invente/ as serenatas para que não tem jeito./ Mas firme avance, e reate os laços rotos/ entre ela mesma e o povo (que não é/ aqueles milhares de fiéis que se transportam/ de camioneta de um lugar pró outro)./ Democracia é isso: uma arte do diálogo/ mesmo entre surdos. Socialismo à força/ em que a democracia se realiza./ Há muito socialismo: a gente sabe,/ e quem mais goste de uns que dos outros./ É tarde já para tratar do caso: agora/ importa uma só coisa - defender/ uma revolução que ainda não houve,/ como as conquistas que chegou a haver/ (mas ajustando-as francamente à lei/ de uma equidade justa, rechaçando/ o quanto de loucuras se incitaram/ em nome de um poder que ninguém tinha)./ E vamos ao que importa: refazer/ um Portugal possível em que o povo/ realmente mande sem que o só manejem,/ e sem que a escravidão volte à socapa/ entre a delícia de pagar uma hipoteca/ da casa nunca nossa e o prazer/ de ter um frigorifico e automóveis dois./ Ah, povo, povo, quanto te enganaram/ sonhando os sonhos que desaprenderas!/ E quanto te assustaram uns e outros,/ com esses sonhos e com o medo deles!/ E vós, políticos de ouro de lei ou borra,/ guardai no bolso imagens de outras Franças,/ ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,/ ou de Estados Unidos que não crêem/ que latinada hispânica mereça/ mais que caudilhos com contas na Suíça./ Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes/ tão dividido entre si mesmo. Adiante./ Com tacto e com fineza. E com esperança./ E com um perdão que há que pedir ao povo./ E vós, ó militares, para o quartel/ (sem que, no entanto, vos deixeis purgar/ ao ponto de não serdes o que deveis ser:/ garantes de uma ordem democrática/ em que a direita não consiga nunca/ ditar uma ordem sem democracia)./ E tu, canção-mensagem, vai e diz/ o que disseste a quem quiser ouvir-te./ E se os puristas da poesia te acusarem/ de seres discursiva e não galante/ em graças de invenção e de linguagem,/ manda-os àquela parte. Não é tempo/ para tratar de poéticas agora./ Santa Bárbara, Fevereiro 1976 (aniversário de uma tentativa heróica de conter uma noite que duraria décadas), publicado in Quarenta Anos de Servidão (1979) - Jorge de Sena via http://cincopontoseis.blogspot.com/

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